sábado, 5 de fevereiro de 2011

O político e o humano

por Luciana Romagnolli
*Matéria publicada no jornal O Tempo.


A obra do contista e dramaturgo russo Anton Tchékhov (1860-1904) gera uma pluralidade de leituras, ora políticas, ora intimistas, nos palcos de Belo Horizonte. Seus escritos servem à crítica social, como o Grupo Oficcina Multimédia faz em "As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras" - em cartaz no Verão Arte Contemporânea (VAC) -, usufruindo do teor social de uma peça que captura as transformações de classe.

Em outro momento, cabem na abordagem interiorizada das relações afetivas, como interessou à Cia. Clara no espetáculo "Nada Aconteceu", do ano passado, dirigido por Anderson Aníbal, adaptando o conto "A Dama do Cachorrinho". "São conflitos comuns, como os nossos", diz o diretor, definindo o próprio olhar para a complexa obra do russo. "Sou muito burguês nesse sentido, trabalho com as questões de dentro de casa, nunca parti para uma temática política".

Ou então os escritos de Tchékhov provocam leituras que tendem ao equilíbrio, como parece ser a proposta do Grupo Galpão ao ensaiar "Tio Vânia", com previsão de estreia em abril. "Vamos realçar a crença de que a arte abre a possibilidade de transformação do mundo e de um homem mais gentil", adianta o ator Eduardo Moreira.

Abstração. No caso da montagem do Grupo Oficcina Multimédia, a peça "O Jardim das Cerejeiras" (1904) é apenas a matéria-prima para uma recriação que traduza o texto em símbolos e imagens, a partir da crença de que a palavra escrita perde força ao ser ouvida.

"O Oficcina Multimédia sempre foi interdisciplinar. Minha formação é musical, nunca tive um vínculo muito forte com o texto, mas, sim, com o som, o movimento e um universo de certa abstração. Imagem é texto, para mim", diz a diretora Ione de Medeiros.

A essência da peça, conforme compreendida pelo grupo e transposta em cena, revela o impasse histórico causado por uma nova ordem social na qual a aristocracia faliu repentinamente, com seus valores e requintes, enquanto os camponeses emergem no poder anunciando o que será a Revolução Russa de 1917.

Livremente, o grupo mantém o ideário, mas abandona o drama moderno realista, fundado nos diálogos e na aporia (a aparente paralisia, quando qualquer ação impulsionada pela vontade é anulada), em troca de uma construção visual e sensorial. "Faz parte da contemporaneidade ampliar as possibilidades de expressão que as rupturas do início do século XX abriram para o trabalho autoral", diz Ione.

A escrita de Tchékhov traz, em si, a riqueza de imagens. Exemplo é o corte das cerejeiras em plena floração, que dura não mais de 15 dias. "É o máximo da violência", comenta Ione, lembrando que as cerejeiras são símbolo da transitoriedade no Oriente, o que a motivou a adotar uma estética identificada à oriental. O cenário ganha forma de labirinto habitado por um minotauro - representante da morte, do renascimento e da dificuldade de encontrar uma saída.

"Tchékhov usa a metáfora de uma família (angustiada pela iminente venda das terras onde está o jardim das cerejeiras) para falar de uma mudança social muito grande. Sai do particular para entrar no social", interpreta Ione.

A diretora compara o impasse retratado pelo russo ao que se vive hoje. "É uma época de paradoxos. Há muita oferta, mas caos econômico e a necessidade de equilíbrio", diz

Galpão ensaia montagens de "Tio Vânia"e de contos

Num sentido distinto da abstração simbólica praticada pela Oficcina Multimédia em "As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras", o Grupo Galpão prepara uma montagem realista de "Tio Vânia", com o subtítulo "Aos Que Vierem Depois de Nós", sob a direção de Yara de Novaes.

Tanto a aporia quanto o momento de virada social, marcantes na obra de Tchékhov, estão presentes na leitura feita pelo coletivo de atores, assim como a proposta de um homem educado capaz de se relacionar de modo mais saudável com a natureza - algo já previsto na peça de 1899.

"Tchékhov é incrivelmente atual", opina o ator Eduardo Moreira, do Galpão. "Trata, no fim do século XIX, de temas que parecem ter sido escritos hoje: a questão da miséria humana, a emancipação da mulher, a preocupação com a natureza. Sempre com essa crença um pouco descrente na construção de uma sociedade mais humana", diz Moreira, que interpretará o médico Àstrov, alter ego do autor.

Respeitando a forma dramática que o russo deu às peças - e sobre a qual Constantin Stanislávski ergueu seu método de interpretação naturalista, no Teatro de Arte de Moscou -, o Galpão sai da sua zona de conforto, como fez ao aderir ao realismo em "Pequenos Milagres", dirigido por Paulo de Moraes. "Mas, agora, é um mergulho mais profundo", diz Moreira.

Passada uma primeira fase de estudo das cenas, no ano passado, o Galpão trabalhou durante dois meses debruçado sobre personagens e situações da peça e, agora, chega à fase final da montagem, "levantando" o espetáculo para uma provável estreia no Festival de Curitiba, em abril.

Fez algumas adaptações, como podar a personagem da ama e algumas das muitas referências à Rússia.

Até o fim do ano, a metade do elenco do Galpão que não se envolveu com "Tio Vânia" fará outro espetáculo baseado em uma seleção de contos de Tchékhov com o diretor russo Jurij Alschitz, o que aumentará a oferta de textos do autor em palcos mineiros.

Em compensação, o projeto de uma trilogia tchekhoviana, divulgado pela Cia. Clara, fica adiado. Depois de adaptar o conto "A Dama do Cachorrinho" no espetáculo "Nada Aconteceu", em conjunto com o grupo Quatroloscinco, o diretor Anderson Aníbal se dedica agora a um discípulo norte-americano de Tchékhov, Raymond Carver (1938-1988), de quem adapta o conto "Iniciantes", para 2012. "Carver mantém a visão generosa do homem", compara.

"Nada Aconteceu" deve, provavelmente, voltar ao cartaz no ano que vem, na mostra de repertório dos dez anos da Cia. Clara.

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