domingo, 23 de janeiro de 2011

O acerto de contas com o passado de David Small

por Luciana Romagnolli e Marcelo Miranda 




A meu pedido, o Marcelo Miranda (jornalista e crítico de cinema do O Tempo e do Filmes Polvo) cedeu para o blog a íntegra de sua entrevista exclusiva por e-mail com o quadrinhista americano David Small, autor de "Cicatrizes" (Leya), uma HQ autobiográfica que figura em listas das melhores de 2010, pela potência emocional e a maneira como se expressa visualmente. Confira (a tradução é minha): 

Marcelo Miranda - Você fez carreira ilustrando livros infantis. "Cicatrizes" sempre esteve presente entre seus projetos como artista ou existiu um momento específico da sua vida que o estimulou a fazer o livro?
Eu sabia que ao fazer Cicatrizes havia a chance de que fazer uma mudança tão grande pudesse confundir meu público, quem me conhecia só por uma via. Mas estou cercado de conselheiros muito bons. Minha esposa, meu agente e também as boas pessoas da W.W.Norton (a editora original), todos pareciam saber que eu tinha algo que seria muito poderoso como literatura. Pessoalmente, eu realmente não tive escolha. Dependia de mim ou encarar essas memórias diretamente e lidar com elas, ou deixar que algo terrível acontecesse. (Depressão, como você sabe, não semeia efeitos apenas na mente, mas também no corpo. Como já disse a psicanalista Alice Miller, o corpo nunca mente, ele expressa por nós o que nos recusamos a assumir, e isso geralmente nos abre a doenças). 

Vivi mais de meio século e continuava tendo sonhos e depressões que mostravam que, em algum nível, eu ainda era um garoto problemático de 14 anos. Eu precisava investigar isso. Eu pensei que gostaria de voltar a fazer psicanálise profunda, mas onde vivo, nos campos, é impossível achar esse tipo de ajuda. Aqui você consegue remédios, que podem ajudar contra o estresse, mas eles não agem na raiz do problema. Por isso, fazer esse livro foi uma maneira de trazer de volta o passado e me fazer revivê-lo de um modo muito real e confrontativo. O fato de poder fazer isso com imagens ajudou demais, porque fez que tudo isso fosse muito imediato e tangível.(Eu recomendo altamente!).



Histórias em quadrinhos com elementos autobiográficos sempre existiram (inclusive com Will Eisner), mas ganharam ainda mais força nos últimos anos, com sucessos como "Retratos", "Persépolis" e "Fun Home". O seu livro se diferencia pelo olhar mais amargo e pelo tom trágico da história. Foi muito difícil rememorar os acontecimentos da sua infância e juventude?
Sim, foi difícil, até assustador às vezes, especialmente quando percebi que conseguia, cada vez com mais facilidade, reviver a minha mãe naquelas páginas. Com frequência, senti que eu não poderia continuar, mas, ao mesmo tempo, eu sabia que se não o fizesse, eu estaria perdendo algo importante. Não gosto de falhar, não gosto de desistir, e eu queria ser bravo, como um soldado em batalha. O que me ajudou muito foram os sonhos - todos eles preservados ao longo dos anos no meu diário de sonhos - que injeta um tom de metáfora fantástica na minha história desolada. Enquanto eu os desenhava, comecei a entender seus significados com mais clareza. Isso também ajudou a conseguir a simpatia e o encorajamento de familiares, amigos e editores (Assim como um contrato e um prazo, dois ótimos motivadores!).    

Além de um relato muito forte, "Cicatrizes" é uma excelente história em quadrinhos. Você sempre pensou em contar sua história nesse formato? 
Eu não pensei nele como um quadrinho, mas mais como um filme, que é o meio que eu estudei mais. É por isso que a graphic novel - especialmente aquelas que li quando estava na França, muitas delas com uma forte influência cinematográfica - se tornou meu meio perfeito. Eu tentei fazê-lo como uma obra em prosa, mas escrever era muito difícil para mim. Por alguma razão, eu penso mais fortemente na linguagem visual. Meu signo astrológico (aquário/ macaco) diz que sou agressivamente verbal. Isto é verdade, eu acho, mas, como ao crescer não era permitido ser verbal e sempre fui proibido de expressar minhas opiniões, passei a ser bem mais observador. Acho que é correto dizer que eu sou agressivamente comunicativo, mas não tão adepto à linguagem escrita.


Seus pais faleceram antes de você publicar "Cicatrizes". Você teria conseguido, pessoalmente, fazer ou publicar o livro com eles ainda vivos?
Provavelmente, não. Enquanto eles ainda estavam vivos, eu estava muito zangado, muito ferido, e não era muito razoável quanto a isso. Evitava confrontos porque temia meus sentimentos explosivos. Dito isso, eu não acho que um livro como esse teria resolvido o conflito. Iria embaraçá-los profundamente, talvez deixá-los muito culpados, e não era nada disso que eu buscava ao fazer o livro. Nunca quis ser maligno ou revanchista, mas, sim, autêntico comigo mesmo. A verossimilhança foi minha inspiração. Os sentimentos dos meus pais estavam realmente fora de questão. Por eles estarem mortos, pude dizer tudo o que eu queria sem nenhum medo de reprovação. E, devo dizer, eu senti a reprovação mesmo assim, a cada linha que eu desenhava! As vozes e as opiniões deles ainda estavam na minha mente, como a voz de um superego punitivo constantemente fazendo terríveis julgamentos. No meu livro, eu não digo ou mostro nada que não tenha acontecido. (Meu próprio irmão confirmou isso em entrevistas. Ele viveu a mesma vida que eu, talvez pior, porque nasceu antes). Revelei os acontecimentos do meu ponto de vista como criança, não do ponto de vista deles, que eu só poderia supor. Tentei não fazer avaliações. Não havia necessidade de julgamento. Era suficiente dizer: "foi isso o que aconteceu".

Eu gostaria de ter conversado com meus pais sobre o que está no livro, mas teria sido impossível ter esse tipo de discussão. Com meu pai, antes de ele morrer eu tentei, mas, a cada vez, ele ficava com os olhos cheios de lágrimas, furioso e desviava. Parecia ser um ato supremo de deslealdade confrontá-lo com isso. Ele só queria uma vida tranquila. Minha mãe não estava em contato com seus verdadeiros sentimentos e geralmente estava zangada com os rumos de sua vida. Eram pessoas de uma outra geração e de uma fração da nossa cultura na qual Freud não era ouvido. Eles eram educados, mas não intelectuais.  Estavam interessados em dinheiro, não em autoconhecimento. Por todas essas razões, ele devem ser perdoados. Cicatrizes me ajudou a me distanciar disso tudo e, o mais importante, a ver meus pais como seres humanos. Esse é o único tipo de perdão que, no fim das contas, significa algo para mim.

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