segunda-feira, 14 de março de 2011

O negro que queria ser branco

Se Anjo Negro, da Cia. Teatro Mosaico, de Cuiabá-MT, será um dos destaques da Mostra do Festival de Curitiba deste ano, ainda não se sabe. Mas já vem chamando atenção a presença nesta edição do evento de uma montagem de um dos textos mais encenados de Nelson Rodrigues feita por uma companhia distante do eixo Rio-São Paulo.
No domingo, publiquei no Caderno G, da Gazeta do Povo, uma matéria sobre o espetáculo, com entrevista do diretor da companhia, Sandro Lucose, que reproduzo abaixo.

“No Brasil, o branco não gosta do preto e o preto também não gosta do preto.” A conclusão do dramaturgo Nelson Rodrigues após uma viagem ainda adolescente ao Recife, em 1929, fez com que ele sentisse vontade de escrever uma peça sobre negros. A ideia só sairia do papel em 1946, motivada pelo convívio com o jovem ator negro Abdias do Nascimento, a quem ele dedicaria o papel do protagonista no espetáculo
Anjo Negro

, Ismael, um doutor de anel no dedo, belo, orgulhoso de si próprio, mas que trava uma batalha consigo próprio pelos sentimentos contraditórios trazidos por sua condição de ser negro.
À época, não houve quem aconselhasse o dramaturgo a conceder o papel a um negro legítimo. O próprio Ziembinski, que dirigiria o espetáculo, e incrivelmente, mesmo Abdias, votaram por um ator branco com o rosto pintado – uma espécie de regra no teatro dito “sério” no Brasil, e não apenas nos Estados Unidos.
A estreia no Teatro Phoenix, naquele mesmo ano, seria um sucesso estrondoso. A proprietária da casa, a atriz Maria Della Costa, faria Virgínia, a bela esposa branca tomada à força por Ismael, interpretado pelo ator Orlando Guy, com graxa no rosto. Ela, a quem se pode atribuir o papel de verdadeiro anjo negro, mata todos os filhos logo após o nascimento, como forma de vingança, até que conhece Elias, um homem branco que a fará sentir o desejo de se tornar livre.
De lá para cá, a tragédia foi montada pouquíssimas vezes, mesmo sendo considerada uma das obras mais intensas e poéticas de Nelson Rodrigues. Por isso, será um privilégio conferir a montagem trazida à Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba pela Cia. Teatro Mosaico, do Mato Grosso, nos dias 6 e 7 de abril, no Teatro da Reitoria.
Em meio a tantos espetáculos cariocas e paulistas, a peça deve provocar curiosidade também pela sua origem. Sediada em Cuiabá, cidade com produção cultural ainda pouco reconhecida, a Mosaico comemora 15 anos de uma trajetória pontuada por espetáculos de verve popular, essencialmente musicais, feitos para serem encenados em espaços alternativos. Boa parte deles foram apresentados no Fringe, como o mais recente, Caravana da Ilusão, e o de maior sucesso, Auto da Estrela-Guia, que rendeu sessão extra à companhia.
A companhia adentra a Mostra Contemporânea com uma proposta diversa e após ser duplamente convidada. “Fomos convidados no ano passado, mas a gravidez da atriz principal, Joana Seibel, coincidiu com as datas do festival”, conta o diretor Sandro Lucose. Este ano, felizmente, houve nova chamada, e Anjo Negro finalmente poderá ser visto fora de Cuiabá, onde estreou em dezembro de 2009 com dez apresentações. “Faremos uma turnê nacional este ano, e a primeira cidade será Curitiba”, conta Lucose.
A dificuldade de Nelson Rodrigues para ver sua peça nos palcos foi sentida por Sandro Lucose desde que, há 10 anos, abdicou da ideia de montá-la como projeto final do curso de teatro realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio. “Não havia atores negros suficientes na escola”, lembra. No Mato Grosso, para onde voltou após se formar, a empreitada seria ainda mais difícil diante da realidade local. “Eu me sinto na atual conjuntura com o mesmo desafio da década de 50. Os atores daqui ainda são muito jovens, não há escolas de teatro, imagine então encontrar um elenco de 13 atores negros para o espetáculo”, diz.
Após o tempo necessário para formar um elenco profissional, o diretor finalmente decidiu levar a cabo a empreitada. “Não temos ator negro em Cuiabá, então, foi preciso convidar um de fora para interpretar Ismael (Deo Garcez). Se fosse montar a peça no Rio de Janeiro, em Salvador ou no Nordeste de modo geral, penso que hoje não haveria essa dificuldade”, conta.
Para enfrentar o problema com o restante do elenco, o diretor optou por uma solução cênica não-realista, estilizada, como, por exemplo, vestir os atores brancos com indumentárias que fazem referências aos elementos das religiões afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé. Ele também foge do espaço realista criado pelo dramaturgo buscando aproximações com a linguagem cênica contemporânea. “Nelson descreve que a platéia precisa avistar uma casa de dois andares mobiliada, mas transformei o cenário em uma gigantesca cama de casal que se transforma em outros ambientes como um grande mausoléu”, conta.
A sonoplastia, calcada no folclore e nas religiões, é feita ao vivo pelos próprios atores com instrumentos musicais e objetos como ferro, vidro e madeira. “O ator se apóia pouco na cenografia, tem que se desdobrar corporalmente. A base do espetáculo é a dança contemporânea e a capoeira” conta.
Lucose enumera as razões prováveis que fizeram a peça ser tão pouco montada. “É um texto caro, que exige muitos atores em cena, e que requer maturidade por sua densidade e pela forte referência à tragédia grega”, diz, agradecendo o apoio do Festival de Curitiba, do Banco da Amazônia, que apóia a companhia desde 2009, e do Prêmio Myriam Muniz recebido no ano passado para tornar possível a circulação do espetáculo.

Serviço
Anjo Negro (confira o serviço completo do espetáculo), da Cia. Teatro Mosaico. Dias 6 e 7 de abril, às 21 horas, no Teatro da Reitoria. Ingressos a R$ 25 e R$ 50.

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