sábado, 30 de abril de 2011

Em 2011, Festival de Curitiba encontrou sua vocação

por Luciana Romagnolli

Passado um mês do Festival de Curitiba, ainda é tempo de dizer que este foi um ano de consolidação, potencialmente divisor de águas na história do evento. Desde que o Fringe cresceu desenfreadamente e a palavra "teatro" foi retirada do nome, acusando a intenção de ampliar quanto se possa a abrangência do evento para outras artes e atividades, ficou claro que, de parte da produção, o investimento seria em dar volume a um evento de proporções grandiosas que atendesse a públicos diversificados e a produções artísticas também das mais distintas, desde o teatro mais comercial, produzido em série, ao de pesquisa. Pelo que entendo, fazer a distinção e a seleção simplesmente não estava no campo de interesse da organização do festival.  Lutar contra as motivações e a visão de quem o realiza não surte efeito. Por isso tentativas como o abaixo-assinado para que houvesse curadoria no Fringe fracassaram.

Pois bem. O festival me parece finalmente ter encontrado sua vocação, a de que os artistas se articulem aproveitando a infraestrutura do festival para propor recortes, pontos de vista sobre seus trabalhos, em conjunto. O que a organização oferece está dado (não quero dizer que seja impossível barganhar uma coprodução ou outros avanços, falo do modelo de evento), um espaço de atuação e visibilidade amplo, como um enorme guarda-chuva. Cabe aos artistas, sobretudo aos grupos, descobrir que podem se aglutinar e chamar a atenção para si nessa multidão disforme.

Iniciativas semelhantes vinham acontecendo há alguns anos, mas foi em 2011 que se viu uma variedade delas funcionamento ao mesmo tempo, delineando programações com afinidades estéticas e sujeitas a alguma curadoria, a alguma seleção: deu-se o retorno da Mostra Novos Repertórios, a continuidade e crescimento do Coletivo Pequenos Conteúdos, a novidade da Mostra Outros Lugares, mais uma edição de leituras e uma encenação na Mostra do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-Paraná, a reunião de espetáculos paulistas e do amazonse Francisco Carlos na Conexão Roosevelt, os encontros na sede da Cia. Brasileira pela Mostra Petrobrás, e outros mais. O que isso trouxe de novo? Reforço na divulgação, um pensamento crítico/estético por trás de cada proposta, e a distinção entre centenas de espetáculos, que permite enfim ao espectador (o leigo e o profissional) enxergar com alguma nitidez o que a mostra tem a oferecer e poder fazer suas próprias escolhas. Tanto que nada disso passou despercebido da imprensa nacional, que desta vez pôs o teatro curitibano na vitrine.

Não foi à toa que a maioria dessas mostras continha produções curitibanas. Fora a óbvia facilidade maior dos artistas da cidade-sede se organizarem, isso reflete um amadurecimento da cena curitibana, que teve em 2010 um de seus anos mais felizes. Alguns grupos importantes ainda ficaram de fora, caso da Vigor Mortis, que foca seu interesse em múltiplos projetos neste ano mas decidiu se abster do festival, descrente dele. Ou da Cia. Silenciosa. E da Obragem. Mas a maioria estava lá: desde as companhias muito jovens que se arriscam ainda tentando descobrir a própria linguagem (como muito se vê no Pequenos Conteúdos) às adultas Cia. Brasileira e a Obragem, em sua melhor fase.

E há a pequena revolução que o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR está realizando na cidade. Fez de Curitiba um ambiente de inquietação autoral, instigou em quem já escrevia e em quem ainda não escrevia o desejo de desenvolver uma dramaturgia justa com o ser humano e com o seu tempo, perscrutando o que há de particular em cada autor, contra a reprodução do imaginário clássico, televisivo ou outro que seja. Obviamente esse é um caminho acidentado, as tentativas primeiras vêm muitas vezes vincadas pelo esforço, ocasionalmente reproduzem estratégias "contemporâneas" sem organicidade, ou falta densidade, mas é daí que podem surgir (e surgem) obras potentes. Diante desse cenário favorável, só se pode esperar que haja, de fato, continuidade.

Quanto aos grupos de fora, podem seguir o exemplo. Este ano Minas Gerais esboçou fazê-lo, ainda timidamente, com uma reunião de esforços para veicular anúncios. Uma mostra (formatada pelos próprios artistas mineiros) poderia surtir mais efeito por lá.


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Em três dias de permanência, pude ver apenas três espetáculos da Mostra Contemporânea. Lamento, porque as notícias que chegaram a mim relatam uma seleção com maior qualidade do que a média recente.

Lamento também uma das escolhas - o que só reforça para mim a ideia de que o interesse do teatro hoje está realmente nos grupos. Um Coração Fraco (foto acima), ao contrário, é um daqueles encontros episódicos. Teatro de ilustração do texto, extremamente retido às palavras de Dostoiévski, se constroi pelos diálogos e não encontra forma definidida para a narração: ficam os personagens alternados, perdidos "fora" do cenário, a falar um texto que não lhes parece dizer respeito. Não traz na encenação algo que instigue a reflexão e o recomende à mostra oficial de um festival. Tem Caio Blat, ator que felizmente é mais do que uma celebridade televisiva para atrair público, conhece o ofício.

Minhas duas outras escolhas pairaram sobre grupos estabelecidos de quem me intessa acompanhar a trajetória. Sobre Tio Vânia - Aos que Virão Depois de Nós, do Galpão, publiquei matéria no O Tempo e crítica aqui, e em breve postarei a íntegra das boas conversas com a diretora Yara de Novaes e a atriz Fernanda Vianna.

Antes da Coisa Toda Começar (foto acima), do grupo Armazém, se constroi de maneira mais desorganizada (ou desnorteada) do que o habitual na direção de Paulo de Moraes, dentro de um cenário duro, que parece confiná-lo. Mas algumas coisas intrigam na montagem. É sabido que o Armazém faz desse espetáculo uma reflexão sobre si mesmo e sobre a arte de ator. Ambientado em um teatro abandonado, onde reside o fantasma de um ator, o cenário remete a outros de montagens do grupo, com direito às "janelas" giratórias tais como havia em Toda Nudez Será Castigada. Além do fantasma, são protagonistas três atores cuja marca comum é o comportamento egóico, centrado até as últimas consequências nos próprios desejos, vontades, volúpias e dores, que são esmiuçados, revirados, cultivados, de modo que quando o sofrimento desmedido causado pela necessida de compensação desse EU gigantesco e imaturo já não cabe no corpo, sai como grito, berro, histeria, tentativa de suicídio, rock.

E aí Rosana Stavis, atriz curitibana, tem a oportunidade de expor uma potência dramática inédita, cuja energia se extravasa pela voz, sobretudo o canto, enquanto o corpo se molda pela apatia.

Um comentário:

Mister Wild disse...

sim Luciana, há uma outra mobilização. Há um amadurecimento. Só o que penso (e aí entendo perfeitamente a Obragem e a Vigor) é uma mobilização tão interessante para um festival que desrespeita completamente os artistas. O quanto é descontado do borderô é uma piada de mal gosto, sem falar na demóra para o pagamento da miséria que sobrou. Saio de mais esse festival com a sensação de meu trabalho explorado, e acho que é essa a sensação que todos devem sair. Menos a Parnax e o banco Itaú (que jura patrocinar o evento, ignorando completamente a lei Roanet). O legal é que esta mobilização interfére dirétamente na cena teatral do ano todo.