sexta-feira, 1 de abril de 2011

O foco na palavra

por Luciana Romagnolli
Conversa por e-mail com Marcos Damaceno, diretor de Antes do Fim (fotos), em cartaz no Fringe pela mostra Outros Lugares, e coordenador do Núcleo de Dramaturgia Sesi/PR, sobre a dramaturgia contemporânea. 

PS. Respeitei as maíusculas dele.
Para começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro no desenvolvimento da sua linguagem como dramaturgo e diretor? 
Difícil discorrer definições, colocar palavras que clareiem o que seja o dito Teatro Contemporâneo, teatro feito de pluralidades e ecletismos, contrapontos e desvios. Preferiria me juntar ao Zé Celso e dizer que “só uso o termo contemporâneo porque acho o termo moderno um tanto antiquado”.  Mas, na verdade, não penso que seja assim tão simples. Falo que é difícil por ser um teatro feito de multiplicidades e vertentes que tendem a se esquivar de categorizações objetivas.  Há desde o teatro híbrido, que flerta com a performance e a dança e outras artes, ao Teatro Narrativo (ou a tão bem-vinda Restauração do Teatro Narrativo, como defende Luis Alberto de Abreu). Do Teatro de Imagens, que apropria-se da tecnologia como suporte de linguagem, ao teatro que parte da apropriações de romances.
Mas, não tanto pela vertente (ou categorização), o Teatro Contemporâneo se caracteriza (ou deveria se caracterizar), pela capacidade (ou ao menos intento) de suscitar na plateia novas percepções, novas provocações e questionamentos, não raro opondo-se às regras, normas e convenções dominantes e a discursos estabelecidos. Um teatro que consegue captar elementos de nossos dias e transpô-los à cena, recriando-os de forma como só a subjetividade dá conta de perceber e elaborar.  Recriações da vida que se abrem à exploração de outros universos, à busca de novas linguagens (é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito), a universos e linguagens que nos confrontam com nossas próprias verdades, valores e crenças, possibilitando, assim, ampliar nossa visão e expandir nossa consciência acerca da vida, da realidade, do homem, de nós mesmos, eternos enigmas.    
Como dramaturgo não penso muito em conceitos. Mas claro que o que venho estudando deve influir no momento da criação. Acredito que assim é que é.
Como diretor meu foco principal tem sido a potencialização da palavra no teatro. A exploração da palavra pelos atores. Ganhar e sustentar a atenção da platéia, provocando sua imaginação, quase que exclusivamente pela palavra. Sou antes de tudo um homem da palavra no teatro.  
Há alguns conceitos do Teatro Contemporâneo que percebo que se alinham ao que venho explorando, como por exemplo, o foco na palavra em si, a palavra como ação e elemento estruturador e autônomo da criação (em detrimento da palavra como ferramenta para criação de personagem, trama, enredo, ação, diálogos, etc); o foco na palavra poética e seu poder encantatório; a exploração do estranhamento na linguagem; a manipulação (ou recriação) de realidade própria através da linguagem; a mescla de gêneros (fusão do dramático, narrativo e lírico).
São afinidades que percebo entre o teatro que venho desenvolvendo e características do Teatro Contemporâneo, que são casuais (não há acaso, tudo bem, eu sei). Digo casuais porque nunca pensei em “Ah, vou fazer teatro contemporâneo”, assim como muita gente hoje diz “eu faço teatro de pesquisa” só para ter maiores chances de abocanhar recursos em algum edital público.  
E especificamente no caso da peça Antes do Fim?  
Em Antes do Fim, nos debruçamos em criar uma encenação com foco na palavra poética, na proposta do estranhamento (criação de novo universo capaz de despertar novas percepções e sensações),  na mescla dos gêneros dramático, narrativo e lírico e no experimento com a manipulação da linguagem que fosse correspondente cênico e de atuação às propostas estéticas trabalhas pelo autor.  Por tratar-se de um texto inédito, contemporâneo, o interessante é focar no texto, não tentar imprimir algo nele.  Ao contrário de um clássico, que já foi encenado muitas vezes, em que é interessante ter uma leitura pessoal sobre ele, promover quase uma reescrita. Aos inéditos deve haver uma fidelidade no sentido de deixar o texto aparecer.
Identifico nos últimos cinco anos (pelo menos) uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana? 
O que percebo de positivo é o crescente fortalecimento de (e o surgimento de vários outros)  Teatro de Grupo, que vem se estabelecendo como espaços de criação de trabalhos instigantes e com continuidade. Pesquisa e aprofundamento de linguagem só se fazem com continuidade. O fortalecimento dos grupos e companhias (e não mais tanto a hegemonia do encenador como no Teatro Moderno) parece ser a configuração marcante do atual teatro curitibano. Há alguns grupos que honram o teatro investigativo e representam bem essa inquietação característica do Teatro Contemporâneo na busca de novas linguagens, apesar de serem poucos os que nos apresentam real inovação ou avanço em termos estéticos.
A narrativa desde sempre teve lugar marcante na arte teatral. Os modos épico, dramático e lírico sempre se permearam. Houve um longo período em que o dramático imperou, tendo o narrativo ganhado novo vigor, no mundo todo, a partir dos 70, 80.
Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou tendências mais visíveis? 
Aprecio o trabalho do Marcio Abreu e sua companhia. Sua competência no desenvolvimento de linguagem e estética próprias, mantendo forte interlocução com o público. 
O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças? 
Sofro com isso todos os dias, pois não é o público que está atrelado a essas concepções, mas a maioria dos próprios “fazedores de teatro” (dentro do Núcleo estamos trabalhando para obter algum avanço nesse sentido).
Quanto ao público curitibano (que tem, não sei de onde, a fama de exigente, fama que seja talvez devida à frieza e renitisse próprias do povo da terra dos pinheirais) é igualmente complexo discorrer.  Afinal há públicos e públicos tanto quanto há teatros e teatros.A maior fatia do público sempre será aquela em busca de diversão rápida e ligeira, de preferência com algum famoso no elenco, para depois poder se gabar entre os amigos. Mas há também, mas muito mais diminuto, mas não menos considerável, um crescente publico de Teatro de Pesquisa com referencias e discernimentos que o instrumentaliza a ler espetáculos que flertam com linguagem contemporâneas.  Enfim, percebo a existência de um público sofisticado, porem bastante diminuto.
Gosto de citar o exemplo do Club Noir, de SP (que considero altamente investigativo, envolto com as questões mais instigantes do Teatro Contemporâneo). Acredito que o trabalho do Club Noir seria impossível de se desenvolver com êxito no Rio de Janeiro e que, penso, já teria alguma possibilidade de sobrevivência em Curitiba, desde que se contentasse com curtas temporadas e parcas pessoas na plateia.  Porém, mesmo em São Paulo, cidade que tem amplo e diversificado publico de teatro, companhias que se propõem a investigar novas linguagens sabem que tem que enfrentar o fenômeno de formação de platéia. É sabido que grupos de teatro de pesquisa devem se dedicar a formação de novas platéias para seus próprios espetáculos.  Processo a ser conquistado de forma lenta e gradualmente, num trabalho contínuo ao longo de vários e vários anos.
Do outro lado da ponta do “público sofisticado” me ensinou muito a experiência de cumprir apresentações de Psicose 4h48, há alguns anos, nos bairros mais afastados de Curitiba, num projeto da FCC que visava a democratização do acesso aos bens artísticos da cidade.  O êxito da apresentação de peça, considerada de apreciação “difícil” foi muito questionada por membros da Fundação. Mas lembro-me bem que a peça (entre muitas outras de apreciação mais fácil) foi a que por fim teve maior “sucesso” com o público.  Nunca vou me esquecer da apresentação na Vila Verde (vila mais violenta da cidade) feita para 80 pessoas que nunca tinham assistido teatro na vida. A platéia era na maioria de adolescentes com cara de malvados que pareciam só estar ali por obrigação do professor.  Foi inesquecível ver, que aos 15 minutos de apresentação, os mano e as mina já estavam praticamente todos chorando, emocionados e envolvidos com ao que assistiam. 

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