sábado, 30 de abril de 2011

Em 2011, Festival de Curitiba encontrou sua vocação

por Luciana Romagnolli

Passado um mês do Festival de Curitiba, ainda é tempo de dizer que este foi um ano de consolidação, potencialmente divisor de águas na história do evento. Desde que o Fringe cresceu desenfreadamente e a palavra "teatro" foi retirada do nome, acusando a intenção de ampliar quanto se possa a abrangência do evento para outras artes e atividades, ficou claro que, de parte da produção, o investimento seria em dar volume a um evento de proporções grandiosas que atendesse a públicos diversificados e a produções artísticas também das mais distintas, desde o teatro mais comercial, produzido em série, ao de pesquisa. Pelo que entendo, fazer a distinção e a seleção simplesmente não estava no campo de interesse da organização do festival.  Lutar contra as motivações e a visão de quem o realiza não surte efeito. Por isso tentativas como o abaixo-assinado para que houvesse curadoria no Fringe fracassaram.

Pois bem. O festival me parece finalmente ter encontrado sua vocação, a de que os artistas se articulem aproveitando a infraestrutura do festival para propor recortes, pontos de vista sobre seus trabalhos, em conjunto. O que a organização oferece está dado (não quero dizer que seja impossível barganhar uma coprodução ou outros avanços, falo do modelo de evento), um espaço de atuação e visibilidade amplo, como um enorme guarda-chuva. Cabe aos artistas, sobretudo aos grupos, descobrir que podem se aglutinar e chamar a atenção para si nessa multidão disforme.

Iniciativas semelhantes vinham acontecendo há alguns anos, mas foi em 2011 que se viu uma variedade delas funcionamento ao mesmo tempo, delineando programações com afinidades estéticas e sujeitas a alguma curadoria, a alguma seleção: deu-se o retorno da Mostra Novos Repertórios, a continuidade e crescimento do Coletivo Pequenos Conteúdos, a novidade da Mostra Outros Lugares, mais uma edição de leituras e uma encenação na Mostra do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-Paraná, a reunião de espetáculos paulistas e do amazonse Francisco Carlos na Conexão Roosevelt, os encontros na sede da Cia. Brasileira pela Mostra Petrobrás, e outros mais. O que isso trouxe de novo? Reforço na divulgação, um pensamento crítico/estético por trás de cada proposta, e a distinção entre centenas de espetáculos, que permite enfim ao espectador (o leigo e o profissional) enxergar com alguma nitidez o que a mostra tem a oferecer e poder fazer suas próprias escolhas. Tanto que nada disso passou despercebido da imprensa nacional, que desta vez pôs o teatro curitibano na vitrine.

Não foi à toa que a maioria dessas mostras continha produções curitibanas. Fora a óbvia facilidade maior dos artistas da cidade-sede se organizarem, isso reflete um amadurecimento da cena curitibana, que teve em 2010 um de seus anos mais felizes. Alguns grupos importantes ainda ficaram de fora, caso da Vigor Mortis, que foca seu interesse em múltiplos projetos neste ano mas decidiu se abster do festival, descrente dele. Ou da Cia. Silenciosa. E da Obragem. Mas a maioria estava lá: desde as companhias muito jovens que se arriscam ainda tentando descobrir a própria linguagem (como muito se vê no Pequenos Conteúdos) às adultas Cia. Brasileira e a Obragem, em sua melhor fase.

E há a pequena revolução que o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR está realizando na cidade. Fez de Curitiba um ambiente de inquietação autoral, instigou em quem já escrevia e em quem ainda não escrevia o desejo de desenvolver uma dramaturgia justa com o ser humano e com o seu tempo, perscrutando o que há de particular em cada autor, contra a reprodução do imaginário clássico, televisivo ou outro que seja. Obviamente esse é um caminho acidentado, as tentativas primeiras vêm muitas vezes vincadas pelo esforço, ocasionalmente reproduzem estratégias "contemporâneas" sem organicidade, ou falta densidade, mas é daí que podem surgir (e surgem) obras potentes. Diante desse cenário favorável, só se pode esperar que haja, de fato, continuidade.

Quanto aos grupos de fora, podem seguir o exemplo. Este ano Minas Gerais esboçou fazê-lo, ainda timidamente, com uma reunião de esforços para veicular anúncios. Uma mostra (formatada pelos próprios artistas mineiros) poderia surtir mais efeito por lá.


*

Em três dias de permanência, pude ver apenas três espetáculos da Mostra Contemporânea. Lamento, porque as notícias que chegaram a mim relatam uma seleção com maior qualidade do que a média recente.

Lamento também uma das escolhas - o que só reforça para mim a ideia de que o interesse do teatro hoje está realmente nos grupos. Um Coração Fraco (foto acima), ao contrário, é um daqueles encontros episódicos. Teatro de ilustração do texto, extremamente retido às palavras de Dostoiévski, se constroi pelos diálogos e não encontra forma definidida para a narração: ficam os personagens alternados, perdidos "fora" do cenário, a falar um texto que não lhes parece dizer respeito. Não traz na encenação algo que instigue a reflexão e o recomende à mostra oficial de um festival. Tem Caio Blat, ator que felizmente é mais do que uma celebridade televisiva para atrair público, conhece o ofício.

Minhas duas outras escolhas pairaram sobre grupos estabelecidos de quem me intessa acompanhar a trajetória. Sobre Tio Vânia - Aos que Virão Depois de Nós, do Galpão, publiquei matéria no O Tempo e crítica aqui, e em breve postarei a íntegra das boas conversas com a diretora Yara de Novaes e a atriz Fernanda Vianna.

Antes da Coisa Toda Começar (foto acima), do grupo Armazém, se constroi de maneira mais desorganizada (ou desnorteada) do que o habitual na direção de Paulo de Moraes, dentro de um cenário duro, que parece confiná-lo. Mas algumas coisas intrigam na montagem. É sabido que o Armazém faz desse espetáculo uma reflexão sobre si mesmo e sobre a arte de ator. Ambientado em um teatro abandonado, onde reside o fantasma de um ator, o cenário remete a outros de montagens do grupo, com direito às "janelas" giratórias tais como havia em Toda Nudez Será Castigada. Além do fantasma, são protagonistas três atores cuja marca comum é o comportamento egóico, centrado até as últimas consequências nos próprios desejos, vontades, volúpias e dores, que são esmiuçados, revirados, cultivados, de modo que quando o sofrimento desmedido causado pela necessida de compensação desse EU gigantesco e imaturo já não cabe no corpo, sai como grito, berro, histeria, tentativa de suicídio, rock.

E aí Rosana Stavis, atriz curitibana, tem a oportunidade de expor uma potência dramática inédita, cuja energia se extravasa pela voz, sobretudo o canto, enquanto o corpo se molda pela apatia.
por Luciana Romagnolli

Estive ausente do blog por quase um mês, nem mesmo ao que vi no Festival de Curitiba consegui dar vazão, por conta de um pequeno projeto pessoal, agora terminado (dedos cruzados). Espero poder retomar as atividades por aqui.

Abraço

sábado, 2 de abril de 2011

Impressões sobre o ensaio de Tio Vânia, do Grupo Galpão

por Luciana Romagnolli

O Grupo Galpão fez hoje pela manhã um ensaio aberto de Tio Vânia, no Cine Horto. A diretora Yara de Novaes observou tudo da última fileira da plateia. O público, aliás, vê o espetáculo de uma arquibancada mais alta do que o palco, como deve ser na estreia, dia 8 de abril, às 21 horas, no tal Teatro Bom Jesus, durante o Festival de Curitiba.



O cenário inicial revela apenas a grande mesa de madeira, sólida, onde está servido o café da manhã, no quintal da casa imaginada por Tchékhov. Em torno (e até em cima) dela, transitam os personagens da peça, desvelando aos poucos suas relações e (des)motivações. O texto original é respeitado quase na íntegra, sem que isso impeça um e outro caco nascido dos ensaios - geralmente, tentando capturar o espectador pelo artifício cômico, ao mesmo tempo em que dão mais naturalidade à realidade física da cena.

A chave das atuações é realista, como nunca se viu na trajetória do grupo. Pode também causar algum estranhamento a distribuição dos papéis. Embora seja cedo para afirmar qualquer coisa, pois nem estreia houve ainda. Por outro lado, já sobressai a interpretação segura de Eduardo Moreira (foto) como Ástrov, o médico consciente das falhas humanas, inclusive das que ameaçam o meio ambiente, mas suscetível a um copo de vodka. O intérprete cede ao personagem a fala vigorosa e entusiasmada, além de resquícios de encantamento de um belo homem já em decadência. Há outros atores que ainda têm um caminho a cumprir até dar contornos mais precisos aos seus personagens, justificando o impacto que causam ao redor. Resta tempo.

E é de tempo - entre outras coisas - que o espetáculo trata. Um tempo de transição e desesperança, que lança para o amanhã a possibilidade de uma vida melhor, porque o passado foi desperdiçado e o presente se perde no tédio mais profundo. Se há algo a não se pôr em dúvida, é a atualidade cruel das palavras de Tchékhov e da inação à qual se atam. O que não senti ainda, nesse primeiro contato com a montagem, foi um tempo de encenação elaborado a partir desse tempo problematizado textualmente.

Quando cai a tela branca que isola o cenário-jardim, descortina-se uma salão amplo ocupado apenas por umas cadeiras de madeira e pilares em destruição. Estes, funcionam mais como possível metáfora do que esteticamente. Movem-se aos empurrões dos atores, trocam de lugar, reelaboram o espaço sem de fato construir ambientes definíveis. Concedem dinâmica aos deslocamentos e à ocupação espacial, como não há (por princípio) na apatia dos personagens de Tchékhov.

Para dizer mais, só depois da estreia.     

Para ver em Curitiba, se informe aqui.






 

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A dimensão criativa do presente, do passado e do futuro

por Luciana Romagnolli

Abaixo, as respostas da diretora Sueli Araújo, da CiaSenhas, para a entrevista sobre teatro contemporâneo. As fotos são de Homem Piano - Uma Instalação para a Memória, em cartaz no Fringe.


O que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro na sua pesquisa de linguagem - por exemplo, em Homem Piano?
Há uma grande polêmica sobre o que seja teatro contemporâneo. De minha parte, penso que ser contemporâneo na arte é procurar se movimentar em um território cuja poética seja o resultado de indagações sobre um presente que mantém contato com o passado, mas intui o futuro. Na CiaSenhas o que nos interessa é menos a discussão conceitual do que seja teatro contemporâneo e mais a dimensão criativa destes três tempos paralelos.

A cada momento observamos transformações na realidade imediata e elas impulsionam a poética de nossos espetáculos. Em Homem Piano – uma instalação para a memória não foi diferente. Nele, tínhamos a intenção de encontrar outros lugares de articulação entre poética e presença, entre estrutura narrativa e lírica, entre realidade e ficção, entre platéia e ator. A nós pareceu que a memória/lembranças/esquecimentos era um tema importante para os nossos dias e a afetividade, uma alternativa com o qual o presente alimenta o futuro.

O que esse espetáculo significa na carreira da CiaSenhas? Me parece que avança em várias frentes, como a relação com o espaço e com o público e a presença cênica do ator.
Sem dúvidas o Homem Piano é um trabalho que redimensiona práticas anteriores da CiaSenhas. Em primeiro lugar porque ele legitima o estudo e a pesquisa como alicerces da criação artística. Em segundo lugar porque nos permitiu desenvolver procedimentos que já a algum tempo vinham nos provocando – como por exemplo maior participação da platéia na construção da escritura cênica, desvendamento do espaço de atuação e radicalização das instâncias ator e performer.


Identifico nos últimos cinco anos (pelo menos) uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público.Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana?
Parece que a narrativização da cena é um fenômeno mundial. Na medida em que o drama é problematizado surgem e reaparecem novas abordagens da cena. O personagem dramaticamente delineado cede espaço para construções mais sugestivas, mais ambíguas, cuja força motriz oscila entre visualidade, sonoridade e relação entre atores e atores e platéia. No caso das estruturas narrativas, a sua premissa é a experiência compartilhada. Ela mobiliza corpos coletivos e estados corporais, imagens criadas e situações reais, verdade e ficção. A narrativa na cena é fundamental porque, mais do que a compreensão dos fatos, a experiência vivida se instaura pela presença. Aspectos importantíssimos no teatro que se quer hoje.

É possível que por Curitiba ser reconhecidamente uma capital de ótimos contistas a nossa subjetividade dialogue muito bem com esta expressão. Nada mais legítimo a exploração desta na cena teatral. Mais isso é pura especulação particular.


O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças?
Eu tendo a acreditar que o Teatro (relação entre um ou mais indivíduos, diante do outro) seja potente independente de que qualquer linguagem por mais popular ou arrojada que ela seja. E que neste sentido qualquer um pode desfrutar do Bom teatro, em maior ou menor grau de fruição, devido ao nível de conhecimento e abertura que o espectador pode ter. Isso não quer dizer que não se deva exigir do poder público e privado programas sérios de formação de platéia. Não podemos ser ingênuos ao ponto de nos distanciarmos do país em que vivemos e assumir a atitude egocêntrica: faço arte para me expressar e ponto final. Não acredito nisso. No teatro a arte é com o Outro. E o Outro, no Brasil, em sua maioria, ainda carece de “alfabetização” cultural; fruir a arte é um direito de todas as pessoas. É o lugar de construção de imaginário e de elaborações subjetivas diversas. Isso significa permitir ao Outro a assimilação de novas manifestações, a capacidade de articular passado e futuro e se posicionar diante daquilo que participa. É necessário que o espectador tenha a possibilidade de odiar ou amar um espetáculo de teatro sem necessariamente rejeita-lo porque este lhe causa o desconforto da incompreensão ou frustra a expectativa de algo “conhecido”, ou o já visto ou consolidado como um modelo de arte teatral.

Em Curitiba, vejo que cada vez mais artistas e público tentam se encontrar no “desconhecido” que o teatro pode proporcionar. O desejo de acesso é fato, faltam ações claras comprometidas a médio e longo prazo com a arte, o teatro e o público. Só assim é possível caminhar, por vezes emparelhados, por diferentes propostas, artistas e público.

O foco na palavra

por Luciana Romagnolli
Conversa por e-mail com Marcos Damaceno, diretor de Antes do Fim (fotos), em cartaz no Fringe pela mostra Outros Lugares, e coordenador do Núcleo de Dramaturgia Sesi/PR, sobre a dramaturgia contemporânea. 

PS. Respeitei as maíusculas dele.
Para começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro no desenvolvimento da sua linguagem como dramaturgo e diretor? 
Difícil discorrer definições, colocar palavras que clareiem o que seja o dito Teatro Contemporâneo, teatro feito de pluralidades e ecletismos, contrapontos e desvios. Preferiria me juntar ao Zé Celso e dizer que “só uso o termo contemporâneo porque acho o termo moderno um tanto antiquado”.  Mas, na verdade, não penso que seja assim tão simples. Falo que é difícil por ser um teatro feito de multiplicidades e vertentes que tendem a se esquivar de categorizações objetivas.  Há desde o teatro híbrido, que flerta com a performance e a dança e outras artes, ao Teatro Narrativo (ou a tão bem-vinda Restauração do Teatro Narrativo, como defende Luis Alberto de Abreu). Do Teatro de Imagens, que apropria-se da tecnologia como suporte de linguagem, ao teatro que parte da apropriações de romances.
Mas, não tanto pela vertente (ou categorização), o Teatro Contemporâneo se caracteriza (ou deveria se caracterizar), pela capacidade (ou ao menos intento) de suscitar na plateia novas percepções, novas provocações e questionamentos, não raro opondo-se às regras, normas e convenções dominantes e a discursos estabelecidos. Um teatro que consegue captar elementos de nossos dias e transpô-los à cena, recriando-os de forma como só a subjetividade dá conta de perceber e elaborar.  Recriações da vida que se abrem à exploração de outros universos, à busca de novas linguagens (é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito), a universos e linguagens que nos confrontam com nossas próprias verdades, valores e crenças, possibilitando, assim, ampliar nossa visão e expandir nossa consciência acerca da vida, da realidade, do homem, de nós mesmos, eternos enigmas.    
Como dramaturgo não penso muito em conceitos. Mas claro que o que venho estudando deve influir no momento da criação. Acredito que assim é que é.
Como diretor meu foco principal tem sido a potencialização da palavra no teatro. A exploração da palavra pelos atores. Ganhar e sustentar a atenção da platéia, provocando sua imaginação, quase que exclusivamente pela palavra. Sou antes de tudo um homem da palavra no teatro.  
Há alguns conceitos do Teatro Contemporâneo que percebo que se alinham ao que venho explorando, como por exemplo, o foco na palavra em si, a palavra como ação e elemento estruturador e autônomo da criação (em detrimento da palavra como ferramenta para criação de personagem, trama, enredo, ação, diálogos, etc); o foco na palavra poética e seu poder encantatório; a exploração do estranhamento na linguagem; a manipulação (ou recriação) de realidade própria através da linguagem; a mescla de gêneros (fusão do dramático, narrativo e lírico).
São afinidades que percebo entre o teatro que venho desenvolvendo e características do Teatro Contemporâneo, que são casuais (não há acaso, tudo bem, eu sei). Digo casuais porque nunca pensei em “Ah, vou fazer teatro contemporâneo”, assim como muita gente hoje diz “eu faço teatro de pesquisa” só para ter maiores chances de abocanhar recursos em algum edital público.  
E especificamente no caso da peça Antes do Fim?  
Em Antes do Fim, nos debruçamos em criar uma encenação com foco na palavra poética, na proposta do estranhamento (criação de novo universo capaz de despertar novas percepções e sensações),  na mescla dos gêneros dramático, narrativo e lírico e no experimento com a manipulação da linguagem que fosse correspondente cênico e de atuação às propostas estéticas trabalhas pelo autor.  Por tratar-se de um texto inédito, contemporâneo, o interessante é focar no texto, não tentar imprimir algo nele.  Ao contrário de um clássico, que já foi encenado muitas vezes, em que é interessante ter uma leitura pessoal sobre ele, promover quase uma reescrita. Aos inéditos deve haver uma fidelidade no sentido de deixar o texto aparecer.
Identifico nos últimos cinco anos (pelo menos) uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana? 
O que percebo de positivo é o crescente fortalecimento de (e o surgimento de vários outros)  Teatro de Grupo, que vem se estabelecendo como espaços de criação de trabalhos instigantes e com continuidade. Pesquisa e aprofundamento de linguagem só se fazem com continuidade. O fortalecimento dos grupos e companhias (e não mais tanto a hegemonia do encenador como no Teatro Moderno) parece ser a configuração marcante do atual teatro curitibano. Há alguns grupos que honram o teatro investigativo e representam bem essa inquietação característica do Teatro Contemporâneo na busca de novas linguagens, apesar de serem poucos os que nos apresentam real inovação ou avanço em termos estéticos.
A narrativa desde sempre teve lugar marcante na arte teatral. Os modos épico, dramático e lírico sempre se permearam. Houve um longo período em que o dramático imperou, tendo o narrativo ganhado novo vigor, no mundo todo, a partir dos 70, 80.
Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou tendências mais visíveis? 
Aprecio o trabalho do Marcio Abreu e sua companhia. Sua competência no desenvolvimento de linguagem e estética próprias, mantendo forte interlocução com o público. 
O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças? 
Sofro com isso todos os dias, pois não é o público que está atrelado a essas concepções, mas a maioria dos próprios “fazedores de teatro” (dentro do Núcleo estamos trabalhando para obter algum avanço nesse sentido).
Quanto ao público curitibano (que tem, não sei de onde, a fama de exigente, fama que seja talvez devida à frieza e renitisse próprias do povo da terra dos pinheirais) é igualmente complexo discorrer.  Afinal há públicos e públicos tanto quanto há teatros e teatros.A maior fatia do público sempre será aquela em busca de diversão rápida e ligeira, de preferência com algum famoso no elenco, para depois poder se gabar entre os amigos. Mas há também, mas muito mais diminuto, mas não menos considerável, um crescente publico de Teatro de Pesquisa com referencias e discernimentos que o instrumentaliza a ler espetáculos que flertam com linguagem contemporâneas.  Enfim, percebo a existência de um público sofisticado, porem bastante diminuto.
Gosto de citar o exemplo do Club Noir, de SP (que considero altamente investigativo, envolto com as questões mais instigantes do Teatro Contemporâneo). Acredito que o trabalho do Club Noir seria impossível de se desenvolver com êxito no Rio de Janeiro e que, penso, já teria alguma possibilidade de sobrevivência em Curitiba, desde que se contentasse com curtas temporadas e parcas pessoas na plateia.  Porém, mesmo em São Paulo, cidade que tem amplo e diversificado publico de teatro, companhias que se propõem a investigar novas linguagens sabem que tem que enfrentar o fenômeno de formação de platéia. É sabido que grupos de teatro de pesquisa devem se dedicar a formação de novas platéias para seus próprios espetáculos.  Processo a ser conquistado de forma lenta e gradualmente, num trabalho contínuo ao longo de vários e vários anos.
Do outro lado da ponta do “público sofisticado” me ensinou muito a experiência de cumprir apresentações de Psicose 4h48, há alguns anos, nos bairros mais afastados de Curitiba, num projeto da FCC que visava a democratização do acesso aos bens artísticos da cidade.  O êxito da apresentação de peça, considerada de apreciação “difícil” foi muito questionada por membros da Fundação. Mas lembro-me bem que a peça (entre muitas outras de apreciação mais fácil) foi a que por fim teve maior “sucesso” com o público.  Nunca vou me esquecer da apresentação na Vila Verde (vila mais violenta da cidade) feita para 80 pessoas que nunca tinham assistido teatro na vida. A platéia era na maioria de adolescentes com cara de malvados que pareciam só estar ali por obrigação do professor.  Foi inesquecível ver, que aos 15 minutos de apresentação, os mano e as mina já estavam praticamente todos chorando, emocionados e envolvidos com ao que assistiam. 

Os descaminhos da tragédia contemporânea

por Luciana Romagnolli

*Crítica da peça Doce Ismênia, publicada no jornal O Tempo.



Na tragédia grega, Ismênia é uma personagem marginal. Nunca tentou tomar as rédeas do próprio destino como o pai, Édipo. Nem demonstrou a força da irmã Antígona, que enfrentou o rei para dar enterro digno ao irmão. Ismênia nasceu sob o signo da passividade, figurante de tramas alheias. Encontrar uma história individual para a personagem foi o impulso seguido por Rita Clemente no espetáculo "Doce Ismênia" (foto de Guto Muniz), em cartaz no Oi Futuro.

Em companhia de Daniel Toledo (também assistente de direção), Rita desenvolveu uma dramaturgia que trouxesse a questão ao mundo contemporâneo. Para tanto, vislumbrou um caminho que atinge uma multidão de anônimos de qualquer época: a tensão entre a história que uma pessoa gostaria de ter vivido e aquela que se impõe a ela.

Escorada nessa proposição potente - e nas habilidades da diretora como atriz experiente, a exemplo do que já se viu no espetáculo "Dias Felizes" -, a montagem de "Doce Ismênia" apresenta a personagem como uma mulher solitária e retraída, cujo sonho máximo é a vida simples, mas a quem espreita o destino trágico da matriz familiar.

A expectativa da morte precoce é acirrada pela presença do pai (Isaías Campara Neto) e da irmã (Patrícia Siqueira), sentados à esquerda, em cadeiras de plateia, tal qual um coro grego, vertido em representantes do público teatral. É interessante o exercício de metalinguagem, que abre lacunas textuais para comentários leves sobre os rumos da encenação, além de referências à figura de Édipo - Antígona, por sua vez, fica quase incógnita.

No outro lado do cenário, iluminado por postes de luz altos e recurvados, um mecânico (Olavo de Castro) repara a carcaça de um fusca, contrapondo à malfadada tragédia a chance de a personagem cumprir um destino comum.

Obstáculos. A montagem não chega a elaborar uma proposta para as questões que deslocam Ismênia de sua marginalidade histórica. Antes, apresenta no palco o problema do qual parte e seus descaminhos. A decisão faz lembrar os conflitos e incertezas sobre "Barbazul" que o Teatro Andante pôs em cena.

O primeiro obstáculo que enfrentam é pensar o que seria uma tragédia contemporânea. A resposta aponta para um mundo onde já não há duelos. Opta-se, então, pelo acidente de carro.

Sem negar que o trânsito possa ser motivo trágico hoje, fica ao público a possibilidade de contestar uma escolha que retira a tragédia do violento embate humano e a deposita no choque homem-máquina, sem explorar mais o componente humano da irremediável solidão de Ismênia.

A essa inconsistência no desenvolvimento da personagem, junta-se um desnível nítido entre as qualidades dos intérpretes, o que esvazia as piadas metateatrais entregues a Isaías Campara Neto, enquanto as falas de Patrícia Siqueira vêm desprovidas de inflexão. Seus personagens se tornam acessórios. Para a atriz Rita Clemente, é ocasião de sobressair e demonstrar sua destreza. Para a diretora Rita Clemente, faltou o equilíbrio.

Agenda
O que. "Doce Ismênia"
Quando . Hoje, às 21h; amanhã, às 19h e 21h; e dom., às 19h
Onde. Teatro do Oi Futuro Klauss Vianna (av. Afonso Pena, 4.001)
Quanto. R$ 15