quarta-feira, 30 de março de 2011

O frescor do encontro com o público

por Luciana Romagnolli





Desta vez, quem fala é Marcio Abreu, diretor da Cia. Brasileira de Teatro, que encena Oxigênio durante o Fringe. Para quem não viu, é minha principal recomendação para esta edição. Vamos às respostas:

Qual o lugar e a função do teatro na sociedade midiatizada e individualista em que vivemos? 
É o lugar da escuta, da ação compartilhada, do encontro em lugares improváveis, da ressignificação do humano. O teatro, assim como toda arte, tem um aspecto de inutilidade e, muito embora eu acredite na importância de afirmar essa inutilidade, admito uma certa função da arte por trás de tudo. É contraditório: a própria inutilidade exerce uma função, como, por exemplo, propor novas relações das pessoas com a noção de tempo. Quando se vai ao teatro, vive-se um tempo relativizado. Isso não é necessariamente útil, mas estimula a sensibilidade e pode promover novas percepções do outro, de si mesmo e do mundo.

O que você, à frente da Cia. Brasileira, entende por teatro contemporâneo? Que é o mesmo que eu perguntar o que lhe interessa dentro do arcabouço do que se convencionou chamar assim. 
É uma questão interessante, que só dá pra tentar responder de dentro da fogueira. Definitivamente penso que teatro contemporâneo não está necessariamente ligado à noção de teatro que se faz nos dias de hoje. Nem sempre essa duas categorias coincidem. Penso que existem pelo menos duas questões das quais não se pode escapar quando falamos de teatro contemporâneo: a primeira é o FAZER repensando os modelos que existem até então (sobretudo ampliando as noções de escrita para teatro), a segunda é a PRESENÇA do ator em relação ao público e como, a partir dessa relação, surge um novo conceito de encenação, favorecido pelo estatuto fundamental da APRESENTAÇÃO.

Você acha que o espectador médio ainda carrega expectativas antigas, relacionadas a um teatro moderno ou aristotélico, com enredo, personagens e ação, ao assistir a um espetáculo teatral hoje? Quais seriam as maiores dificuldades? Isso prejudica a relação com a obra? 
Sim, acho que esse fenômeno acontece, mas talvez em menor escala do que imaginamos. Isso é, em geral, um problema de leitura em amplo sentido e não tem a ver com ter mais ou menos informação, experiência ou cultura. Tem a ver com condicionamentos sociais. Se eu leio apenas a minha expectativa, ou seja, se eu só consigo ver numa obra aquilo que eu espero dela, certamente a minha chance de ficar frustrado é grande. Se eu me posiciono aberto a uma experiência, seja ela qual for, serei mais permeável a tudo e poderei exercer meu senso crítico, formular opiniões, responder sensivelmente como leitor ou espectador. Tenho a impressão que um público supostamente menos viciado, ou seja, aquele que não é pseudo intelectual, mas, ao contrário, ou não sabe nada sobre a obra ou ainda, o outro extremo, aquele que sabe muito sobre a obra, acaba por se relacionar de maneira mais potente com a arte contemporânea de um modo geral. Mas isso é apenas uma impressão de dentro da fogueira. E, infelizmente, o que acontece é que temos uma grande parcela da população que escolhe o medíocre como sensibilidade. É a famosa ignorância consentida e consciente, por escolha. Contra isso é difícil lutar. De qualquer maneira, no teatro dos dias de hoje tem espaço para o teatro contemporâneo, assim como para o teatro da confirmação das expectativas medianas. Ambos podem ter qualidades e defeitos.

Em Oxigênio e em Vida a companhia repensa o modo como o ator se coloca em cena, pela narração-performática. Como o grupo tem entendido essa relação entre ator e texto, ator e plateia? 
Antes de tudo, posso dizer que essa é uma busca de anos de trabalho. A continuidade, neste caso, é fundamental. Antes de Vida e Oxigênio, já buscávamos um frescor no encontro da cena com o público. Isso quer dizer: como mobilizar o ator e os elementos que compõem a dramaturgia para convergir na criação de um tempo real, de um momento presente, com todas as suas armadilhas e dificuldades? Por um lado isso significa o exercíco técnico de precisão em relação ao texto e à cena, assim como o exercício de abstração e "esquecimento", tudo isso simultaneamente. É desta forma que tenho trabalhado como dramaturgo e encenador e é isso que obsessivamente proponho aos atores. Em Vida e em Oxigênio, acredito que conseguimos graus diferentes, mas ainda assim significativos, de encontro com o público no tempo real. Vejo que o teatro acontece, mas a fragilidades declaradas e assimiladas.

Quem são os pensadores do teatro que mais o instigam hoje e por quê?
Nos últimos anos tenho tentado acompanhar os trabalhos do coreógrafo Jerôme Bel e da intérprete e coreógrafa Vera Mantero. Ambos trabalham na frequência da técnica associada ao frescor do encontro com o público.

segunda-feira, 28 de março de 2011

A trajetória da Pausa Companhia

por Luciana Romagnolli


Prosseguindo com as entrevistas, aqui estão os comentários da Andrea Obrecht, atriz da Pausa Companhia, em cartaz no Fringe com o Roteiro Escrito com a Pena da Galhofa e a Tinta do Inconformismo (foto abaixo de Alessandra Haro). Ela faz uma boa reflexão sobre a trajetória do grupo. Só não obedeceu ao esquema de perguntas e respostas, então segue o texto corrido: 




"Suas perguntas são boas para provocar discussões em encontros, rendem bastante. Com certeza cada um da Pausa teria colocações bem pessoais sobre cada tema. Então o que escrevi abaixo não digo pela Pausa, mas por mim. 

A Pausa desde sua formação tem procurado desenvolver trabalhos que conversem com a contemporaneidade. Isso tem sido um exercício para nós. Até agora foram cinco montagens de espetáculos. Com cinco diretores e autores diferentes. A questão “teatro contemporâneo” funcionou para cada montagem de uma forma e a plateia respondeu a cada montagem de uma maneira. Isso para mim exemplifica na pratica o quão plural é pensar teatro contemporâneo e a relação da plateia com ele. 


Aperitivos, nossa primeira montagem, era uma comédia, teve um formato palco italiano, com personagens construídos a partir de uma verdade psicológica, quatro paredes e tal. As cenas contavam histórias com inicio meio e fim. A contemporaneidade dessa montagem para mim estava na dramaturgia escrita por Mark Harvey Levine, que utilizava desde recursos não realistas para desengatilhar ações entre os personagens (namorado de aluguel, paranormal, acreditar ser um super-herói), até uma cena com estrutura mais ousada que revela a história do personagem através de metáforas com cores, filmes, bebidas e diálogos não realistas. Essa foi nossa peça que atingiu um maior numero de público, com maior aceitação popular. Acho que o público no geral ainda vai ao teatro esperando encontrar histórias lineares e/ou comédias. Porém rotular nunca é saudável. A cena de Aperitivos que não era comédia, e que tinha uma estrutura mais ousada e simbólica, era tão popular quanto as outras. É difícil definir a relação do público com o teatro contemporâneo. Claro, existe o publico clichê do tipo que só quer ver espetáculo comercial (para mim, esse público não consome teatro pelo teatro, e sim entretenimento). Mas existe o público de teatro que não espera só entretenimento, e ele está crescendo cada vez mais, para esse público a linguagem contemporânea não é um empecilho, mas sim algo estimulante que provoca um diálogo direto. 


Febre - Um Sintoma Cênico (foto abaixo) foi uma prova para a gente. Aqui o espetáculo tinha em toda a sua concepção uma proposta contemporânea, desde os atores narradores, a plagicombinação na construção do roteiro, o teatro sendo reafirmado como jogo coletivo, a plateia participando ativamente, a metalinguagem servindo como reflexão a todo o momento. Um espetáculo que tinha como um dos principais objetivos discutir o teatro. Tínhamos dúvida quanto a resposta do público, e a resposta foi ótima. Uma plateia diferente (não só a panelinha do teatro) lotava as apresentações e ajudava espontaneamente na divulgação porque gostavam. Esses dois trabalhos foram completamente diferentes (pode-se dizer opostos) mas tiveram ambos uma ótima aceitação pelo público. Daí penso... o que a plateia quer é ser comunicada. Muitas vezes teatro contemporâneo soa como algo tão simbólico que para haver comunicação precisa de um manual, ou de um conhecimento intelectual prévio. E esse tipo de espetáculo muitas vezes não tem sucesso com a massa, mas não acho que isso seja culpa da contemporaneidade, e sim das opções que o artista toma.




A Pena da Galhofa e a Tinta do Inconformismo, o último trabalho da Pausa, vai para outro lugar completamente diferente do Aperitivos e conversa com o Febre (devido a presença do Fernando Kinas em ambos). Aqui o ator narrador aparece novamente, a quarta parede não existe, o teatro é reafirmado todo o tempo como um jogo coletivo, o roteiro é construído a partir de uma colagem, a ideia de se contar uma historia com início, meio e fim não é o objetivo final da concepção do espetáculo. O teatro é colocado em questão e discutido com o público, este sim é um dos alicerces da peça. Os atores são jogadores, constroem e desconstroem personagens e ideias na frente do público, mostrando que o foco não é a magia de recursos, a catarse vindo de surpresas, a "idolatração" da construção do grande ator, mas sim o que está sendo posto em discussão. Recursos teatrais e surpreendentes existem, mas para facilitar a transmissão de uma ideia, nunca para o puro entretenimento. O público é chamado para construir ativamente a peça, escreve as lápides, come pipoca, troca ideias sobre o xadrez com os atores. Isso dá um caráter único a cada espetáculo, cada dia um publico e cada dia uma peça diferente. Abre janela para a performance. Reafirma a importância da plateia na construção da obra. A luz e o cenário são pensados para dialogar com essas ideias. Para mim, essas são características contemporâneas. 

Agora, quanto às tendências do teatro curitibano... Não tem muita produção em Curitiba que reflite amplamente sobre o que está produzindo, quais os objetivos que pretende alcançar com a montagem e qual o melhor formato para se alcançar esse objetivo. Produz-se bastante instintivamente. Não acho que a produção curitibana pensa sobre o teatro contemporâneo. Mas as ideias desse teatro permeiam aqui e ali, então é possível ver recursos contemporâneos nas montagens. Isso não significa que a montagem reflite sobre a contemporaneidade, mas sim que usa de uma estratégia contemporânea aqui e ali. Me parece que para se fazer teatro contemporâneo é preciso refletir sobre as opções, para conscientemente quebrar amarras e paradigmas. Ser contemporâneo tem a ver com a atitude do artista, não é fácil... O Kinas para mim é bastante contemporâneo por essa razão."

sábado, 26 de março de 2011

"Teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho"

por Luciana Romagnolli

Publiquei na Gazeta do Povo de hoje, em "participação especial", um caderno G Ideias sobre Teatro Contemporâneo, a partir das peças em cartaz no Festival de Curitiba. Leiam aqui:
Em busca de ousadia e experimentação
Uma questão de expectativas
A invenção na dramaturgia
Cena para um teatro da transgressão
Em tempo para apreciar a "vanguarda"

Claro que sobrou um grande material das conversas com minhas fontes e, por julgá-lo interessante, vou disponibilizar aqui. Começo pela entrevista com o dramaturgo e diretor Luiz Felipe Leprevost (o blog dele), bastante generoso em suas respostas. Confiram:

Ensaio de "O Butô Mick Jagger", fotos de Rosano Mauro.


Para começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro na sua pesquisa de linguagem - por exemplo, em "O Butô Mick Jagger"?
Embora devêssemos entender por teatro contemporâneo tudo o que é produzido nos dias que correm, noto que se convencionou nomear assim uma parte bem específica do que temos visto em cena. Entenda-se: um teatro em que personagens dão lugar às subjetividades, polifonia de vozes, à imagética e sinestesia. Temos mais a música como suporte do que o enredo, ou então o enredo inserido na possibilidade do sonho, do ilógico, indiferente à regras da linearidade, promovendo fusões de tempo e espaço, exigindo do raciocínio. Narração e representação correndo simultâneas, apropriadas de ideias de distanciamento, admitindo variados pontos de vista, libertas do que se entende por causa e efeito e desenlace da trama. Assim, o teatro contemporâneo vai mais perguntando que respondendo, estruturando paradoxos, evitando ser moralizante.
Temos mais a imagem do que o discurso e, se temos o discurso, ele vem sem psicologismo, com insolência e visão de mundo singular. Todavia, não encaremos nenhum destes elementos e características como obrigatórios, ou como fossem uma receita. O que mais me encanta nas possibilidades do que pode ser de fato o teatro contemporâneo é a vocação que nele encontro para rejeitar fórmulas e modos unilaterais de se pensar e fazer e criar realidades paralelas.

No caso específico da peça "O Butô Mick Jagger", há uma apropriação explícita tanto do Butô, de seus fluxos e suas contorções ritualísticas de acesso ao reino dos mortos, como também do universo pop sucateado que se vê no rock dito clássico e em dois de seus ícones, Mick Jagger e Kurt Cobain. A escritura do texto, digo, o desenho dele na página, mimetiza a dança, quero dizer, a forma como as palavras estão espalhadas ali sugerem ao leitor que são um corpo que está dançando. E foi daqui, do texto, que eu e as atrizes partimos, para logo ver tudo se complicar ainda mais na encenação.

Identifiquei, nos últimos cinco anos pelo menos, uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana?
De fato, o que você identificou é muito o que venho notando também. É claro que há uma tendência no ar, uma espécie de território reconhecível, comum a todos, de onde se parte para a tentativa de cada um em ser original, pessoal, singular. De qualquer modo, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguimos fazer, então se admitimos que somos seres imperfeitos e diferentes uns dos outros, como não teríamos obras diferentes? Claro que o que se partilha sempre é defeituoso. Acredito que a consciência disso, a desistência de querer ser deus enquanto criamos, é o que nos aproxima de nós mesmos e do público e, por conseqüência, faz-nos originais. Admito, não falei muito objetivamente sobre a cena curitibana. Mas me pergunto se os que dentro dela melhor realizam o que se está chamando de teatro contemporâneo, não são justamente os que, de um modo ou de outro, se relacionam madura e ousadamente com toda essa confusão entre ideal e forma, desejo e frustração. É um jeito meu de ver as coisas, certamente muitos pensam diferente. Que bom.

Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou
tendências mais visíveis?
A julgar pelos trabalhos da Companhia Silenciosa, do Heliogábalus, da Cia. Senhas, da Companhia Brasileira, Obragem, e Marcos Damaceno Companhia de Teatro, e da 1801, da Armadilha, Teatro de Breque, Pausa, Transitória, Súbita, Acruel, Subjétil, e o Couve-flor (algumas nomes que lembrei de cabeça agora), não há dúvida, temos uma cena com foco no contemporâneo admirável. Cada uma destas companhias tem pesquisa própria, com ênfase em aspectos diferentes (performance, texto, rito, música da fala, criação coletiva, etc), mas que se tocam e se irmanam. Sinceramente, estamos muito bem servidos. Quem acompanha estes grupos reafirma para si a todo momento que, de fato, não há formulas nem regras obrigatórias. São coletivos que se empenham na missão de não permitir que o teatro seja um museu tomado por tédio e mofo. Apostam que a comunhão em tempo presente, o que vem sendo chamado de presentificação, o compartilhamento, a interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.

O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças?
Tenha a impressão que todas estas características que se revelam no teatro contemporâneo inevitavelmente refletem o modo de ser do homem contemporâneo, que é fragmentado, sem certezas definitivas, suspenso entre as necessidades básicas e a alta tecnologia, etc. Daí que entendo que o teatro que muitos de nós tem tentado fazer, por levar isso tudo em conta, apresenta um grande respeito pelo individuo e suas particularidades (por que não dizer também subjetividades?). Assim, quem sabe, estejamos conseguindo ter um teatro um pouco mais democrático, o que respeita o indivíduo justamente porque é o que implica o individuo, então, se os conteúdos implicados reverberam, naturalmente se sociabilizam. Parece-me que essencialmente é isso o que temos de diferente do teatro atrelado meramente à noções aristotélicas, e daquele cujo objetivo é provocar uma identificação no espectador com a exposição de uma fatia da vida espelhada. Sabe, tenho uma tendência a superestimar o público. Quero crer ainda nos espaços do instinto, dos sentidos que pensam antes que o cérebro. Como disse Fernando Pessoa, a inteligência é um instinto. Claro que uma minoria do público domina o repertório técnico teatral para que se cobre dela maior atenção com a cena da cidade. Mas é evidente também que toda pessoa que se coloque em situação responderá de algum modo ao que é proposto. Sou otimista em relação a isso. A pergunta é: será que os que propõe estão preparados para uma abertura real, digo, para tratar a platéia como platéia atuante? Aqueles que disserem sim verdadeiramente estarão derrubando uma série de tabus, preconceitos e medos. De todo modo, é certo que o teatro será para sempre um bicho estranho, e eu acho bom que assim se dê.



E Leprevost acrescentou:
Coisas que pensei mas não entraram nas minhas respostas:
Certamente que o teatro será para sempre um bicho estranho (e eu acho bom que seja assim). Um ornitorrinco é um bicho estranho e nem assim deixa de ser algo de nosso mundo. Além do mais, se é tão incompreensível, por que minha vizinha, que nem sequer ouviu um dia falar em arte, tem um bicho desses dentro do apartamento dela?
...
Sou o tipo de dramaturgo que escreve seus textos geralmente antes de começar os ensaios. Muitas vezes, para ser franco, nem tenho ensaios à vista, escrevo sem saber se um dia virei a ser encenado. Mas não quer dizer que eu seja um autor de gabinete (forma pejorativa com que alguns se referem aos dramaturgos) e que meus textos não possam sofrer alterações durante os ensaios para que se chegue, de comum acordo, no que é idealizado pela direção e elenco, especialmente quando sou eu mesmo o encenador – o que é raro.
...
Sabe, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguiremos fazer. A obra que se partilha, seja durante os ensaios ou mesmo depois da estréia durante a temporada, sempre é defeituosa.
...
Não sei se acredito ser possível mudar o mundo por meio do teatro. Mas tenho fé na interação. E interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.
...
Não aconselho você usar os elementos que se estuda em oficinas de dramaturgia contemporânea todos eles em uma única obra. Seria até ingênuo, pois ninguém dá conta disso. É mais prudente e eficaz escolher e aplicar um ou outro procedimento de criação e construção. E, mesmo assim, pode ter certeza que se o texto for potente, se tiver algo ali a mais do que palavras amontoadas, tomará vida própria e fará o que quiser com
você. Sim, (já foi bastante dito, não é?) são os textos que nos escolhem e nos escrevem, não nós a eles. A técnica então deve ser estudada apenas para não atrapalhar a mão, que quer ser selvagem.
...
Apropriando-se da máxima de Godard, pode ser dito que o teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho.

Céu domina palco e plateia

por Luciana Romagnolli


Fui um pouco temerosa ver o show da Céu ontem à noite, no Grande Teatro Palácio das Artes. É um teatro imenso, para cantoras que se impõem no palco, e a minha lembrança de vê-la cantar em pequenos teatros (o HSBC e o Sesc da Esquina, em Curitiba), ainda na época do primeiro disco, não era das melhores. Céu dançava ensimesmada, sem encarar de frente a plateia, mexendo só os ombros, como se estivesse num mundo à parte. Os vocais imperfeitos, a difícil adaptação da sua música superproduzida para o palco. Mas algo aconteceu que o show seguinte feito em Curitiba, em agosto de 2009, no John Bull Music Hall, já para o disco "Vagarosa", foi muito mais quente. Claro que o clima de balada ajudava, as músicas dela embalaram o público numa dança malemolente e as tais imperfeições ficaram abafadas. Além disso, Céu finalmente encarou o público de frente, fazendo charme com o cabelão cacheado.

Pois que, ontem, Céu não apenas atraiu um público numeroso ao Palácio, como mostrou diante dele uma presença de palco admirável. Como boa paulista, é um tanto dura, mas não parou de dançar (e até requebrar), conversou sobre as músicas, contou que considera "Grains de Beuté" especial e assumiu a linguagem corporal de quem domina palco e plateia.

O repertório girou em torno do disco "Vagarosa", calcado no reggae com tratamento eletrônico e dedicado à preguiça. Ao vivo, Céu soa bem menos suave. Os tons baixos, sim, mantêm aquela suavidade seca do disco, porém, quando projeta a voz, sai granulada e rascante. A dicção não permite a ninguém que não conheça previamente as canções entender o que canta, e Céu acentua isso com uma divisão silábica estranha (como em "Nascente"). Seu canto é quebradiço, sua beleza está nas várias texturas vocais e criadas por instrumentos e sintetizadores.

"Espaçonave" abriu o show mostrando que a transição para o palco deixa mais à vista a falta de organicidade de sua música. Sobretudo, expõe as arestas que a produção do disco atenua. Mas arestas podem ser interessantes. O que se perde é fluidez. Algumas das melhores performances são "Bubuia", assumindo sem perda os vocais de Thalma de Freitas e Anelis Assumpção, que gravaram com ela. Outras são "Cordão da Insônia" e sua releitura para "Visgo de Jaca", de Martinho da Vila. Duas canções, sobre todas as outras, cresceram no palco, revelando força que não mostravam nos discos. "Valsa para Biu Roque" foi entoada intimamente já no bis, só voz e contrabaixo, em delicada emoção. E "Papa", com os vocais livres de pós-produção para saírem soltos e brincar, ganhou humor e vivacidade. Ainda mais, ao ser intercalada com uma deliciosa versão country de "It Takes Two to Tango".

Imperfeita, sim, mas dona de um timbre e um modo de cantar cheios de personalidade, Céu cresceu (ao menos por uma noite, ficou do tamanho do Palácio das Artes) e faz jus ao seu público que aumenta.

Sem vídeos do show de ontem disponíveis ainda, deixo o clipe de "Cangote":


E uma (menos animada) apresentação de "Papa" + "It Takes Two To Tango" em Sttutgart:



*

"A experiência é uma grande escola para performances tímidas"
O que se pode esperar do repertório desse show em Belo Horizonte? Basicamente o "Vagarosa" ou terá algumas canções diferentes e talvez até novas?
É basicamente o show do "Vagarosa" com algumas do primeiro disco também. Claro que, com o tempo, nós vamos inserindo novos elementos, mas é meio que o mesmo show mesmo.

Acompanhando três shows seus, desde o lançamento de "Céu" até a turnê de "Vagarosa", vejo que começou mais tímida no palco e agora já se mostra mais à vontade nesse lugar de exposição. Como você percebe a sua evolução nas apresentações ao vivo?
Sim, acho que com a estrada e com uma série de situações adversas, como tocar para outras culturas, fazer tours e estar esgotada de cansaço mas ter de manter a voz e a performance intactas, ou tocar em lugares públicos onde as pessoas não estão necessariamente para te ver, a experiência é de fato uma grande escola para performances tímidas! Mas, de qualquer maneira, não creio muito que uma pessoa de toda tímida iria parar em cima do palco!

Você tem se apresentado muito em festivais, no Brasil e fora. Pode fazer uma comparação sobre como se estruturam aqui e lá? Li no seu blog, por exemplo, um texto que você cita do Daniel Ganjaman criticando a separação da área vip e da popular.
Bacana poder falar um pouquinho disso. Nós temos festivais bem legais, mas acho que poderíamos ter mais, sendo o Brasil um dos países, na minha opinião, mais musicais do mundo. Acho que poderia existir um incentivo maior de iniciativas privadas, empresas e principalmente do governo pra que pudéssemos ter mais opções. Não só festivais para os artistas de grandes públicos tocarem, mas também pras bandas que estão no começo, as indies e as de médio porte. Enfim, quando volto de experiências assim, uma quantidade enorme de festivais muito bem produzidos, organizados não só para o público mas também para os artistas, democráticos e, principalmente, sem aquela enorme "barriga" na frente do palco que separa o artista de seu público e ganha o nome de área VIP, dá uma vontade enorme de que possamos caminhar cada vez mais para isso.

Você já declarou que "Vagarosa" veio de um desejo de desacelerar o ritmo apressado de trabalho e de acúmulo de dinheiro que rege o tempo atual. Conseguiu? Como está sua rotina?
Sim e não. Sim pois acho que levo a minha vida de uma maneira em que participo das coisas que amo e que são de fato importantes em minha rotina…cuidar e brincar com minha filha, encontrar amigos, tentar administrar o tempo no dia a dia com espaços para outras coisas que não sejam só "função". Várias vezes, deixo de fazer algo profissional pois não quero estar longe numa data de importância pessoal, familiar, enfim…isso é uma virtude enorme de ser minha própria "chefa". E as vezes não também, não consigo dar conta de tudo e me pego acumulando funções e ficando doida!

Você tem composto? O que tem te interessado ao fazer música?
Tenho sim, na verdade eu nunca páro de escrever, no máximo dou uma pausa quando a correria está muito brava. É muito tênue essa linha de onde começa um disco e termina outro, para mim um vai se fundindo com o outro e, quando você vê, já está com novas histórias para contar e quer ir para o estúdio gravar. Já tenho algumas ideias em mente, ainda não tenho datas nem dados práticos, mas creio que ano que vem estarei com disco novo sim. Tenho escutado muito Erasmo e um disco chamado Lambada das Quebradas, do Mestre Vieira da guitarradas. Estou completamente apaixonada por guitarrada.

Como está sua carreira internacional?
Está muito legal, mês passado eu conheci o leste europeu e fiquei impressionada com a receptividade deles com a música brasileira. Foi demais. Agora estou me preparando pra voltar para os Estados Unidos no final de abril. 

*Entrevista publicada no Jornal O Tempo, em 24/03/2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

O negro que queria ser branco

Se Anjo Negro, da Cia. Teatro Mosaico, de Cuiabá-MT, será um dos destaques da Mostra do Festival de Curitiba deste ano, ainda não se sabe. Mas já vem chamando atenção a presença nesta edição do evento de uma montagem de um dos textos mais encenados de Nelson Rodrigues feita por uma companhia distante do eixo Rio-São Paulo.
No domingo, publiquei no Caderno G, da Gazeta do Povo, uma matéria sobre o espetáculo, com entrevista do diretor da companhia, Sandro Lucose, que reproduzo abaixo.

“No Brasil, o branco não gosta do preto e o preto também não gosta do preto.” A conclusão do dramaturgo Nelson Rodrigues após uma viagem ainda adolescente ao Recife, em 1929, fez com que ele sentisse vontade de escrever uma peça sobre negros. A ideia só sairia do papel em 1946, motivada pelo convívio com o jovem ator negro Abdias do Nascimento, a quem ele dedicaria o papel do protagonista no espetáculo
Anjo Negro

, Ismael, um doutor de anel no dedo, belo, orgulhoso de si próprio, mas que trava uma batalha consigo próprio pelos sentimentos contraditórios trazidos por sua condição de ser negro.
À época, não houve quem aconselhasse o dramaturgo a conceder o papel a um negro legítimo. O próprio Ziembinski, que dirigiria o espetáculo, e incrivelmente, mesmo Abdias, votaram por um ator branco com o rosto pintado – uma espécie de regra no teatro dito “sério” no Brasil, e não apenas nos Estados Unidos.
A estreia no Teatro Phoenix, naquele mesmo ano, seria um sucesso estrondoso. A proprietária da casa, a atriz Maria Della Costa, faria Virgínia, a bela esposa branca tomada à força por Ismael, interpretado pelo ator Orlando Guy, com graxa no rosto. Ela, a quem se pode atribuir o papel de verdadeiro anjo negro, mata todos os filhos logo após o nascimento, como forma de vingança, até que conhece Elias, um homem branco que a fará sentir o desejo de se tornar livre.
De lá para cá, a tragédia foi montada pouquíssimas vezes, mesmo sendo considerada uma das obras mais intensas e poéticas de Nelson Rodrigues. Por isso, será um privilégio conferir a montagem trazida à Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba pela Cia. Teatro Mosaico, do Mato Grosso, nos dias 6 e 7 de abril, no Teatro da Reitoria.
Em meio a tantos espetáculos cariocas e paulistas, a peça deve provocar curiosidade também pela sua origem. Sediada em Cuiabá, cidade com produção cultural ainda pouco reconhecida, a Mosaico comemora 15 anos de uma trajetória pontuada por espetáculos de verve popular, essencialmente musicais, feitos para serem encenados em espaços alternativos. Boa parte deles foram apresentados no Fringe, como o mais recente, Caravana da Ilusão, e o de maior sucesso, Auto da Estrela-Guia, que rendeu sessão extra à companhia.
A companhia adentra a Mostra Contemporânea com uma proposta diversa e após ser duplamente convidada. “Fomos convidados no ano passado, mas a gravidez da atriz principal, Joana Seibel, coincidiu com as datas do festival”, conta o diretor Sandro Lucose. Este ano, felizmente, houve nova chamada, e Anjo Negro finalmente poderá ser visto fora de Cuiabá, onde estreou em dezembro de 2009 com dez apresentações. “Faremos uma turnê nacional este ano, e a primeira cidade será Curitiba”, conta Lucose.
A dificuldade de Nelson Rodrigues para ver sua peça nos palcos foi sentida por Sandro Lucose desde que, há 10 anos, abdicou da ideia de montá-la como projeto final do curso de teatro realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio. “Não havia atores negros suficientes na escola”, lembra. No Mato Grosso, para onde voltou após se formar, a empreitada seria ainda mais difícil diante da realidade local. “Eu me sinto na atual conjuntura com o mesmo desafio da década de 50. Os atores daqui ainda são muito jovens, não há escolas de teatro, imagine então encontrar um elenco de 13 atores negros para o espetáculo”, diz.
Após o tempo necessário para formar um elenco profissional, o diretor finalmente decidiu levar a cabo a empreitada. “Não temos ator negro em Cuiabá, então, foi preciso convidar um de fora para interpretar Ismael (Deo Garcez). Se fosse montar a peça no Rio de Janeiro, em Salvador ou no Nordeste de modo geral, penso que hoje não haveria essa dificuldade”, conta.
Para enfrentar o problema com o restante do elenco, o diretor optou por uma solução cênica não-realista, estilizada, como, por exemplo, vestir os atores brancos com indumentárias que fazem referências aos elementos das religiões afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé. Ele também foge do espaço realista criado pelo dramaturgo buscando aproximações com a linguagem cênica contemporânea. “Nelson descreve que a platéia precisa avistar uma casa de dois andares mobiliada, mas transformei o cenário em uma gigantesca cama de casal que se transforma em outros ambientes como um grande mausoléu”, conta.
A sonoplastia, calcada no folclore e nas religiões, é feita ao vivo pelos próprios atores com instrumentos musicais e objetos como ferro, vidro e madeira. “O ator se apóia pouco na cenografia, tem que se desdobrar corporalmente. A base do espetáculo é a dança contemporânea e a capoeira” conta.
Lucose enumera as razões prováveis que fizeram a peça ser tão pouco montada. “É um texto caro, que exige muitos atores em cena, e que requer maturidade por sua densidade e pela forte referência à tragédia grega”, diz, agradecendo o apoio do Festival de Curitiba, do Banco da Amazônia, que apóia a companhia desde 2009, e do Prêmio Myriam Muniz recebido no ano passado para tornar possível a circulação do espetáculo.

Serviço
Anjo Negro (confira o serviço completo do espetáculo), da Cia. Teatro Mosaico. Dias 6 e 7 de abril, às 21 horas, no Teatro da Reitoria. Ingressos a R$ 25 e R$ 50.